Promessa em post
Somos iguais. Lutadores, convictos, teimosos, trabalhadores...inseguros, mimados, ingénuos, sonhadores...somos a mesma infância, em vidas diferentes.
Recordo chegar, recordo chegar com muitas resoluções. Férias de verão, um mês de férias ali e tanta resolução tomada, tanta tarefa assumida. Assumo muitas vezes assim, de mim para mim e muito. Hoje sou uma fraca e assumo aquilo que não cumpro, mas nos bons velhos tempos, bons por serem puros e ingénuos, velhos porque não tinham pernas para andar de tão acabados, de tão longe da realidade, eu cumpria aquilo a que me propunha e para aquele verão tinha muitos planos. Tinha 12 anos e era uma texuga, vivia debaixo de uma pedra, era bicho do mato, bem pior do que sou hoje, e teimosa até dizer chega. Cheguei para mudar, porque ali tinha espaço. Cheguei para partir diferente. A resolução estava tomada e nada me demoveria. Já com a chucha havia sido assim. Todos os dias ouvia histórias da chucha e dos dentes e as histórias eram várias, a de que me cairiam os dentes de fraqueza e por isso passava a vida a mastigar a chucha para exercitar as gengivas, a de que pela chucha entrariam bichos para dentro da boca e por isso dormia de dentes cravadas na chucha, a de que ficaria com a boca de charroco do meu primo Paulo e por isso deixei de sorrir para não esticar as peles e a pior, a mais temida, a de que os meninos crescidos não usam chucha e eu adorava ver-me crescida pelo que para mim esta era o verdadeiro terror. Mas também para esta eu consegui contra-argumento e aos três anos tomei a decisão de deixar de chuchar aos cinco, o que me permitiu mais dois anos de chucha. Resolvida mas não burra. Hoje a resolução em atitude está-me em completo desuso, não vale a pena resolver porque depois não cumpro (ainda nem sei muito bem o que pensar do assunto), mas com três anos a coisa era diferente e, como gente grande, comuniquei a quem de direito, pais e afins, que quando fizesse cinco anos deixaria de usar chucha, porque aí sim era importante ser e parecer crescida, afinal eram cinco anos. No dia em que fiz cinco anos, dirigi-me assim que acordei, ainda de pijama e sozinha, à varanda escura e vazia do 2º andar do prédio velho onde morava e por entre as grades de ferro verde e ferrugento, estiquei o braço, disse adeus chucha e lancei-a aos cães que guardavam a oficina do rés-do-chão e que me pareciam bem mais pequenos e necessitados do que eu. Voltei as costas, entrei, percorri o corredor que dava ao quarto dos meus pais, acordei a minha mãe e comuniquei-lhe que tinha deitado a chucha ao cão. Nunca mais se viu bendita chucha. Resolvia assim, era fiel. Hoje não sei...
No era uma vez que vivia naquela altura, as decisões eram válidas e para serem levadas muito a sério: perder nos três meses de verão os quinze quilos que demorariam dois a três anos a desaparecer, com muito sacrifício; fazer muito exercício para não ficar flácida; sair de baixo da pedra da calçada onde morava; descobrir o mundo; deixar que me descobrissem; mudar. Não sei esperar, não sei ser normal, chamava-lhe garra, convicção e julgava-as qualidades, mas hoje entristecem-me pela instabilidade que me trazem. Tu apareces aqui, como mais uma tarefa assumida, a de tomar conta do meu priminho mais novo, do casula da família. Tarefa que assumi com a garra que vivia na altura. E lá ias tu, correr comigo para a trincheira porque a promoção do exercício físico tinha que começar desde a infância e eras pequenino, pelo que tinhas que dormir a sesta e tinhas que aprender tudo o que te quisesse ensinar e tinhas que me obedecer porque eras minha responsabilidade e eu tinha medo que te acontecesse alguma coisa e não podias comer gelados todos os dias porque a educação alimentar evita excessos que levam à obesidade e tudo. E tudo o que fizesse de mim uma boa educadora, uma preceptora exemplar, porque me tinham pedido para tomar conta de ti.
Tal como me tinha comprometido lá se foram os quinze quilos a mais, saí debaixo da pedra onde vivia (para aos dezoito anos me enfiar debaixo dos livros, mas isso não interessa nada), conheci amigos de uma vida e mudei. Mas tomar conta do miúdo foi o mais enriquecedor e é a recordação mais carinhosa que tenho desse verão. Lembro-me das histórias que contava para te adormecer, lembro-me de me deitar contigo no sofá xadrez da avó para que adormecesses, mas nunca de te deixar não dormir. Lembro-me de correr atrás de ti na trincheira e de pensar que eras um rabino, mas nunca de lá estares obrigado. Lembro-me de saborearmos os poucos gelados que me permiti comer naquele verão e de ficares todo lambuzado. Lembro-me de passearmos e de te explicar como se atravessava uma rua. Lembro-me de olharmos para a esquerda e para a direita e de atravessarmos a rua de mãos dadas. Lembro-me de como eras pequenino e do orgulho que sentia quando alguém na rua achava que eras meu irmão pelo carinho com que te tratava. Lembro-me dos teus porquês, sobre tudo e mais alguma coisa, de estarmos sentados no banco do jardim de pernas cruzadas e do gozo que me dava explicar-te o porquê dos porquês. Lembro-me de te repreender por mexeres nas minhas folhinhas de colecção, mas também de te as oferecer para que me escrevesses palavras soltas e lindas que guardei durante anos. Lembro-me das manhãs tristes em que nunca mais chegavas. Lembro-me das saudades que sentia quando não estavas. Lembro-me das gargalhadas...mas também me lembro das lágrimas de quando te obrigava a dormir ou de quando te repreendia.
Não é fácil saber a medida certa de cada gesto, de cada comportamento. Saber se estamos a ser demasiado severos ou demasiado brandos. Só te queria tudo, só queria que crescesses com bases fortes, resistentes. Só queria que o tempo te trouxesse tudo e por isso tinha que agir rápido. Só queria que percebesses que a vida te pode dar tudo se estiveres de olhos bem abertos e disponível para receber. Só queria que ganhasses espírito de luta e que percebesses o quão importante isso seria para o teu futuro. Mas tu eras tão pequeno...e se te roubei parte da infância e se te fiz crescer cedo demais, desculpa. Eu própria era uma criança, não só na idade, mas também nas crenças, na experiência, nas expectativas e ainda hoje e sempre nas emoções. Agi na medida da criança que era e da vontade que tinha de te cuidar.
E na despedida tudo ganhou um sentido diferente. E achei que não te tinha aproveitado. E que tinha sido demasiado severa. E que tu eras demasiado pequeno para aprender tudo o que te queria ensinar. E que não tinhas que ter levado com as minhas resoluções. E que nunca mais gostarias de ti. Mas o sentido inverteu-se e a despedida ganhou asas quando te vi chorar, chorar de tristeza pela minha partida, junto às escadas de pedra daquela casa, muito, muito antiga, acenando com uma mão e agarrado à saia negra da avó Augustinha com outra e as lágrimas caiam pelo rosto do meu pequenino como na gente grande, lágrimas imensas que se sentiam ao longe. Fiquei a olhar-te pelo vidro retrovisor do Renault amarelo, num dia de verão que me pareceu cinzento, e a pensar que ia morrer de saudades. Foste a primeira criança a quem passei um bocadinho de mim e em igual quantidade te dei amor e severidade e não foram, com certeza, as medidas certas, mas tu estás um homem decidido, lutador, lindo e eu orgulho-me muito de ti e do pouco que possa ter contribuído para isso.
Somos diferentes, crescemos distantes, vemo-nos pouco, mas teremos sempre aquele pedaço em comum, seremos sempre iguais no tempo do juntos e isso ninguém nos tira.
2 Comments:
Blondy,
Prendeste-me à tua narrativa do teu mês de férias de verão!
Gostei muito de te ler...
Não te apelides de fraca porque não o és... tens os teus momentos menos bons como todos os seres humanos e por isso te sentes fraca.
Após a leitura deste teu post e dos anteriores, quero pedir-te que te cuides, que te dês valor porque o tens... és um ser humano muito bonito e único!
"Apaixona-te" por ti e deixa que te vejam tal como és!
Continuo por perto...
Um beijo.
Mata-me tu não escreveres a porra do comentário...
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