Afortunada
Tive dois pais. Em muito parecidos. Os dois carecas, os dois convictos. Os dois determinados. Os dois astutos. Os dois acham que a vida já lhes ensinou muito e que já é pouco o que tem para lhes ensinar. Os dois amam-me.
Mas completamente diferentes. O meu pai maior perdoa-me tudo, está sempre presente e vira leão par me defender. O meu outro pai…sim, definitivamente o meu pai menor, até porque de tamanho é também mais pequeno, escorraçou-me de casa ao primeiro erro, só pelo medo de ser enganado. Afastamento profiláctico.
Aprendi muito com os dois. A ser uma lutadora e a nunca desistir (às vezes vou além do que é razoável e isso não aprendi com eles é inato). A ser uma mulher. Com o meu pai maior aprendi várias variantes de mulher, a trabalhadora, a interessada, a simpática, a estudiosa, a decidida, a mulher líder, a mulher do povo. O meu pai menor é diferente, tem outros interesses. Com este aprendi a ser uma senhora, a ser inteligente, a ser sensível ao mundo e às artes, a ser social, a ser mais ponderada e a desenvolver planos de contingência.
Um é meu. Outro nem tanto. Um luta por mim, para mim. Outro não tem vontade de lutar por nada. Ou pelo menos é assim que justifica o seu aparente fracasso de vida.
O meu pai maior aponta-me o dedo quando erro, mas abraça-me com força depois e ajuda-me a fazer melhor. E quando consigo alguma coisa de meu, quando conquisto algo que anseio, fazemos uma festa e sou mergulhada em beijos de orgulho. O meu pai menor também valoriza os meus passos. Quando os considero meus, ele chama-me ingrata e mostra-me que são também muito dele. Quando lhe agradeço a ajuda, diz-me que o feito é só meu e que não há lugar a agradecimentos. Mas no fundo esse é só o papel dele. Ele é muito mais papel do que gente. Tem uma central nervosa diferente. Escolhe os botões certos, carrega no On e sai o papel impresso e assinada, tipo notificação, do que ele tem que ser naquele instante. E se passados uns segundos a central decidir que o papel dele é outro, então aquele botão passa a off e o indicado é rapidamente accionado, com imediata impressão das novas ordens de actuação. Gostava de ser mais emotivo, mais gente, escreve o que gostava de ser, o que gostava de ter, o que gostava de construir, de conquistar, mas infelizmente não é, não tem, não constrói porque não investe alto, e não luta para conseguir conquistar.
O meu pai maior é meu, eu sou dele e vamo-nos amar o resto da nossa vida. Eu e o meu pai menor vamo-nos amando, não sei até onde, não sei até quando.
2 Comments:
pais são sempre incondicionais. os de sangue ou de criação.
os outros, talvez estejam mal designados e, por isso, não se confirmem as características da espécie a que não pertencem.
Obrigado pelas tuas palavras, pai menor. Este está giro. Não achas? Também é teu. Obrigado.
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