Thursday, November 24, 2005

Qualidade da dor


A minha é da melhor qualidade, daquela que moei mas não mata.

Daquela continua, persistente, que incomoda as noites e prejudica o correr dos dias.

Daquela tipo cólica com exacerbações lancinantes, intoleráveis, ou que pelo menos parecem, intoleráveis. Períodos de exacerbação que roubam anos de vida, quilos de inocência e resmas de alegria. Que arrancam esperanças e destroem expectativas.

Daquela referida, que se arrasta do coração para todos os outros segmentos do corpo. O segmento que pensa, o segmento que respira, o segmento que ainda vive. Sinto-me anencefala, fraca, sem capacidade para me levantar outra vez e lutar mais uma batalha. De erguer a espada e rasgar o céu com planos, crenças e atitudes. Sinto-me asfixiada, como peixe fora de água. Sofro a angústia de tentar fazer entrar um ar que não cabe. Como não cabe? Onde coube até agora?

Morrer asfixiado num mundo oxigenado é a pior morte. É a morte sofrida, é a morte sentida, percepcionada. É aquela que nos é apresentada atempadamente, com direito a recepção, jantar de cerimónia e digestivos, no final. É aquela que fica à porta, verborreica, a despejar informação, cheia de medo de voltar para a solidão e denunciando uma imensa vontade de nos roubar. È aquela que ouvimos com um sorriso espelhado na face, enquanto abanamos freneticamente o pé, ansiosos porque feche a porta e vá para longe, bem longe. È aquela que apesar de tudo, da nossa boa vontade, da nossa paciência, da nossa benevolência, e ainda do imenso amor que demonstramos conseguir sentir, nos arrasta com ela para o fundo, sem dó nem piedade, e que fecha a porta a trás, com força, não vá alguém querer salvar-nos da morte anunciada.

Há dor que não mata mas moei e é esta a da melhor qualidade.

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